For “Now and Then”

Não se trata da melhor música dos Beatles. Não é sobre isso. Não se trata de estarem ou não fisicamente todos juntos. Aliás, algo parecido já aconteceu no “White Album”, que foi quase que totalmente composto e gravado individualmente por Paul e John, com eventuais participações de George e Ringo.

O fato é o que se tinha. E com o que se tinha se fez algo exponencialmente representativo para o legado da banda e deleite dos fãs. Pensar que aquilo que estava “morto e enterrado” pôde ser trazido à vida pela tecnologia, é emocionante. Não é a mesma coisa que recriar a imagem de Elis Regina para um comercial. Nem mesmo a surpresa no final do filme “Yesterday”(que também é alucinante). É além. É pegar uma obra real, cantada por John, e fazê-lá ressurgir como mais uma canção dos quatro para a eternidade; tirar do porão empoeirado e jogar pro mundo.

Lançar a última (será mesmo?) música do quarteto em um single juntamente com a primeira (“Love Me Do”), faz parte do marketing. Eu sou defensor do marketing da verdade. Pra mim isso é o marketing da verdade e que também embala um sentimento verdadeiro.

Paul disse que fechou os olhos e perguntou se era isso que John queria. A resposta foi “sim”. Eu acredito. Pra mim, basta. For “now and then”.

Beatles Get Back — Voltando de onde veio

Se eu tivesse um podcast, gravaria um episódio sobre o documentário Get Back dos Beatles. Se fosse um youtuber, subiria um vídeo. Se estivesse em um jornal, redigiria uma matéria, faria uma entrevista… Como não tenho nada disso, e os momentos sociais estão raros para filosofar em botecos com os amigos, escrevo este post. Tenho necessidade de colocar para fora tudo que senti assistindo, à espera de comentários complementares ou discordantes. 

Em primeiro lugar, é preciso contextualizar por que o lançamento de Get Back foi algo tão aguardado e está sendo tão comentado.

Os Beatles existiram por apenas 10 anos, em uma ascendência artística meteórica, que os conduziu de boy band a um grupo dos mais talentosos e inovadores que já houve. Foram 13 álbuns lançados, o primeiro em 1963, três anos após o nascimento da banda — da água para o vinho em sete anos! The Who, Pink Floyd, Led Zeppelin e Jimi Hendrix eram contemporâneos. Então, não é que os Beatles revolucionaram sozinhos o rock e que ninguém era inventivo naquela década, como há a tendência de se imaginar. A questão principal é o impacto que uma banda extremamente popular teve. Eles conduziram o gosto de uma geração de adolescentes de uma canção bobinha como “She Loves You” a patamares mais complexos e inventivos como “Eleanor Rigby”. A música pop experimentou algo que pouco se repetiu nas décadas subsequentes. Isso é marcante e incomum.

A contribuição artística foi tanta que, quando comecei a perceber a magnitude da banda — talvez pelos meus 15, em 1989 — já fazia quase duas décadas que ela não mais existia. Uma carreira de 10 anos, que completava 30 aos olhos de alguém de 15. Sua eternidade, ou perenidade, se apresentava. Não existia mundo sem Beatles mesmo depois de seu fim. E interpreto essa percepção só agora, quando vejo minha filha de 12, 50 anos depois que o “sonho não acabou”, impactada pela permanência estética, assistindo comigo ao documentário que acaba de sair no Disney Plus. Tenho a felicidade de ser contemporâneo dos integrantes do quarteto e, minhas filhas, dos dois que ainda restam. Isso é um privilégio que só meus descendentes terão a verdadeira dimensão, quando pensarem em mim, seu antepassado, e a reverenciada obra deixada.

O filme

Claro que um material audiovisual é fruto de decisões de roteiro e de edição. Supressões, emendas, cortes, deslocamentos, tudo isso tem o potencial de contar muitas histórias diferentes sobre o mesmo material bruto que, nesse caso, era vasto. Porém, como não tenho acesso ao restante das 60 horas de filme, só resta discorrer sobre o que vi e sobre a história que Peter Jackson quis contar. E aqui, vale uma filosofada: o que é a verdade senão a interpretação de cada um sobre o que ouve, escuta, vê, sente? E se ela depende disso, quantas verdades existem sobre cada microfato? A própria definição de “fato” passa a ser questionável. Então, vamos nos basear no que o mundo está nos entregando e, nesse caso, sob o meu ponto de vista baseado no do diretor.

O áudio e o vídeo

O filme já começa com Peter Jackson deixando claro que não houve vídeo para todo áudio disponível e, por isso, precisou cobrir alguns momentos com imagens não relacionadas. Imagino o trabalho que deu, pois, mesmo eu ficando nervoso com a falta de sincronia e tentativa de grudar um final de frase com uma boca se mexendo, sei que se esforçaram para fazer o melhor possível. Já editei materiais densos e conheço a dificuldade. Para os menos introduzidos ao processo, explico o que pode ter acontecido: rolo de filme não grava áudio. E, mesmo que gravasse como as câmeras de vídeo atuais, profissionalmente, sempre se tem uma equipe para o vídeo e outra para o áudio. Então, não sei se material foi roubado, estragou, se perdeu ou, simplesmente não foi registrado em conjunto. O fato é que áudios importantíssimos (e muito bem captados por sinal) precisavam ser usados. Eles já haviam, inclusive, sido lançados em bootlegs durante os anos. Os mais malucos já os conheciam.

O maestro

Paul McCartney se mostra realmente a mola propulsora dos Beatles, o cara que leva a banda nas costas. Claro que é um retrato do final da existência da banda; talvez John fosse mais propositivo nos trabalhos anteriores. Mas ali poderia estar em um momento novo de vida, com a Yoko; mais leve, tranquilo e deixando seu amigo conduzir as coisas. Os fãs mais ardorosos de John podem não ter curtido muito essa coadjuvância de seu ídolo, mas para mim, que sempre fui muito mais Paul, está tudo certo.

No primeiro episódio, enquanto conversavam sobre onde seria o show, e algumas ideias foram lançadas, Macca deu o tom. Disse mais ou menos assim “tem que ser em um lugar meio proibido, em que a gente comece a tocar escondido e a polícia venha nos tirar, como no Senado”. Acabou sendo no rooftop, exatamente dentro desse espírito.

Harrison

A discussão com Paul (muito polida, inclusive, a meu ver), que fez com que George quase deixasse a banda, não passou de um fato corriqueiro em uma sessão de ensaio de qualquer artista. Demonstrou mais a insegurança do guitarrista, que era mais novo que os companheiros e que queria se afirmar como compositor, do que uma animosidade real. A versão do filme “Let It Be” da época tentou mostrar o contrário. Só quem já esteve em uma banda sabe que é normal. Que grupo nunca passou pelo problema da música não estar evoluindo em arranjo quando está sendo executada repetidas vezes sempre da mesma forma por todos integrantes? Paul estava apenas pedindo que fosse decidido o que fazer ou a coisa não sairia do lugar. Com o calendário apertado, novamente o baixista mostrava protagonismo na condução, querendo ser prático, objetivo e desenvolver um processo eficiente.

A composição de “Get Back” e “The Long and Winding Road”

É incrível assistir as  músicas que estão no imaginário coletivo serem compostas na nossa frente. Não tem preço, ainda mais para alguém que gosta de tocar e compor como eu. Ficava torcendo para que Paul achasse os acordes e as palavras: “Vai, Paul! Vai, Paul!”. Queria soprar a dica que “Get Back” devia voltar à primeira nota da harmonia antes de acabar a sequência de compassos, como ela é na versão final! Muito legal! Arrepiante!

A ideia do show na Líbia

O diretor da época, Michael Lindsay-Hogg, estava com a ideia fixa de realizar o show em um anfiteatro em ruínas no litoral da Líbia. É muito engraçado vê-lo tentando convencer todo mundo. Quando Paul diz que Ringo não gostaria de sair do país, o diretor logo mais aparece passando a conversa no baterista. Hilário! Ele não quer desistir da sua ideia genial. Sem dúvida, claro, seria antológico. Mas certamente, se os Beatles tivessem seguido a ideia do diretor, Pink Floyd não teria tocado nas ruínas de Pompeia quatro anos depois. Não seria inovador. E isso me fez lembrar do filme “Yesterday”, que mostra como o mundo seria diferente se os Beatles não tivessem existido. Se você não viu, veja “Yesterday”!

Ringo Starr

Ninguém questiona que o baterista era o mais tranquilo de todos. Se restingia a segurar suas baquetas e a seguir sugestões do Paul sobre como compor levadas e climas. Por outro lado, não significa que não era respeitado. Por três vezes, pelo menos, isso fica bastante claro. A primeira, e principal de todas, é que o projeto tinha prazo para ser finalizado justamente porque Ringo participaria de um filme. A segunda, que já citei acima, é quando Paul diz que é o amigo que não quer sair do país, para dissuadir a todos da ideia de gravar na África. E a terceira e mais legal de todas, é quando os quatro estão conversando sobre a sugestão de se apresentarem no telhado. Paul é contra, Lennon fala, fala, mas não deixa clara sua posição. Harrison diz que é “definitivamente” contra. Mas Ringo diz algo como “eu gostaria muito de tocar no telhado”. Pra mim o filme poderia ter acabado ali! Não haveria nada mais significativo para demonstrar a amizade que tinham, e o valor que davam ao companheiro, do que sublinhar que a palavra final sobre um dos feitos mais icônicos da carreira da banda (além da foto deles atravessando a faixa de segurança na Abbey Road) foi de Ringo Starr.

Os demais elementos

Muito legal ver como a equipe era enxuta, como a banda era simples. O engenheiro de som Glyn Johns se mostrou muito mais produtor do que o próprio George Martin, que pouco se manifesta. Inclusive o técnico deu até palpite no arranjo de “Let It Be”. O privilégio daqueles assistentes que ficavam trazendo chás e torradas é sublime. Mas o destaque maior, o mais simpático e carismático, sem dúvida, era Mal Evans, que demonstrava toda sua alegria em participar, inclusive musicalmente de alguns momentos. Mal era assistente desde a época do Cavern Club, o que demonstra a fidelidade e generosidade que o grupo sempre teve. Infelizmente, Mal faleceu precocemente, em 1976.

Yoko

Peter Jackson preferiu mostrar uma Yoko Ono calada. Ou foi a própria que só assim o permitiu. O que muitos diziam sobre ser a causadora da dissolução do grupo (e os mais entendidos beatlemaníacos não corroboram totalmente com essa versão) não se mostra neste filme. O que vemos é um casal apaixonado, parceiro, a ponto de John fazer questão de mantê-la a seu lado, mais até do acho que deveria, quando se trata de uma banda trabalhando. O núcleo de um grupo é sagrado em momentos como esse.

A rivalidade entre Paul e John

Isso é outra lenda que não aparece. Os dois se mostram bastante amigos. E não há relação animosa que consiga ser disfarçada em 22 dias sob gravação constante de câmeras. Vi em uma entrevista Paul falando sobre o filme. Ele diz que o documentário o fez se lembrar de como se davam bem mesmo, coisa que a mídia e o tempo transcorrido pareciam querer provar o contr´ário para ele mesmo. Claro que pode ser apenas conversa para boi dormir, mas não é o que a “verdade” da película demonstra.

Um material sublime

Como é bom poder ter acesso a um produto dessa dimensão. Geralmente (e é compreensível que seja assim), as escolhas de finalização primam por uma entrega enxuta, objetiva, sintética. Aqui, a imersão das quase oito horas de material nos transporta para a época, nos faz entrar em suas cabeças, viver aqueles dias com eles. É um produto para quem é fã. Não serve para quem está descobrindo a banda, claro.

Parece que Peter Jackson tem outra versão, de cerca de 16 horas, que será lançada em bluray. Nem sabia que isso ainda existia, mas é certo que já comprei.

Desabafo sobre o show de Paul McCartney em Porto Alegre

Show de Paul McCartney em Porto Alegre
Durante “Let it Be”

Fui ver Paul McCartney em Porto Alegre no último dia 13 e cheguei a uma conclusão: algumas coisas precisam mudar com a produção dos shows internacionais no Brasil. Somos tradados como animais. Sempre, nessas situações, me transporto para a Roma antiga em um espetáculo de gladiadores. O pior é que as arenas romanas, por sua arquitetura, proviam uma experiência bem melhor de visualização.

Cheguei uma hora e meia antes do show. A fila, que começava ao lado direito da frente do estádio, corria pra esquerda, ia para trás, e ainda dava curvas por lá. Quando eram 21h, com pontualidade britânica, Paul começou a tocar. A gente ainda estava na rua. Pararam de revistar para aumentar o fluxo e, estimo, umas 10 mil pessoas entraram livres, sem respeitar as normas de segurança. Aconteceu a mesma coisa no Roger Waters há alguns anos e deve acontecer em todo megaevento mal organizado em terras latino-americanas. Trocando em miúdos, por uma questão de localização dentro do estádio, não fazia diferença alguma chegar uma hora e meia antes ou pontualmente às 21h. Eu estaria exatamente onde fiquei. Não conseguiria ver o palco do mesmo jeito. Assisti pela TV, ou seja, pelo telão. É isso que o valor do meu ingresso compra? Menos mal que estava lá pela música e não pela imagem. Na real, era pelos dois.

Não sei se o cachê dos artistas para o Brasil é maior do que para o primeiro mundo — certamente os custos de transporte de equipe e equipamentos sim — mas justifica o ingresso mais simples para o show do Paul McCartney no País custar 3,5 vezes mais caro do que o mais barato no show que fez, uma semana antes, em Nova York? Aqui o valor iniciava em R$350. Em NY, US$30. Um amigo meu foi, chegou 20 minutos antes do horário marcado, sentou em cadeiras numeradas, extremamente confortáveis, com visibilidade perfeita. Pagou US$90. Eu paguei R$400 (mais taxa do site) para não conseguir ver o palco e ter que ficar olhando pelo telão com chuva na cabeça. A lotação no Barclays Center, em NY, é de 19 mil pessoas. A do show no Beira-Rio, 49,5 mil. Aí, ainda tem essa papagaiada toda de desconto para estudante, para idoso, para sei lá o quê. Sabe quem paga por isso, né? Não é o governo, não é o produtor e não é o artista: sou eu, que subsidio no valor da inteira!

Será que falta dinheiro para atender as pessoas com competência e agilidade? Será que nomes como Paul McCartney e U2 não deveriam exigir uma infraestrutura mínima para atender os fãs quando se aventuram por países subdesenvolvidos? Afinal, são tão defensores das boas causas…

Tirando todos os problemas de “entrega de produto”, é claro que o show foi demais, a performance foi sublime, o set list muito bom e não me arrependo de ter ido. Paul é um grande artista que, ao alto de seus 75 anos, mostra por que fez parte da maior banda de todos os tempos. Só fico muito triste com a falta de consideração e profissionalismo a que precisamos ser submetidos, mesmo quando pagamos caro por um evento de nível internacional aqui no Brasil.