Eu, Eu Mesmo e o Laranjal

fotoFiz uma bolha no pé.

Há exatos 13 dias, estou caminhando todas as manhãs no Laranjal. Sem falta. Pego o nascer do sol. Não sei se estou gostando do exercício, de ter um tempo para ouvir música, de colocar as ideias em dia ou do visual, que nunca se repete. Acho que é de tudo e mais um pouco. Jamais pensei que chegaria a ficar ansioso para caminhar cedo no dia seguinte. Pois é. Mas é.

O problema é ter que interromper os passos para fotografar. Já devo ter quase 100 imagens, que, mesmo com o celular, são enquadráveis. Mérito do lugar.

Mas não sou só eu, eu mesmo, a música e a natureza. Apesar de raras, há pessoas que cruzam comigo. E isso é legal de observar.

No primeiro dia, passei por um cara logo na arrancada. Ele fez questão de me olhar e cumprimentar. Pensei: “deve caminhar sempre; será meu colega; quer ser gentil”. No segundo, eu já estava acenando quando percebi que passou reto e nem olhou para mim. Vai entender. Só o vi três dias.

Tem um, sempre sentado, de mochila nas costas e jaquetão de neve. Não sei se foi parar ali através de um portal cósmico. Parece esperar uma carona que nunca chega. No meu vai e vem, passo por ele por três vezes por manhã, sempre estático no mesmo lugar.

Um outro chega mais tarde, com seus cachorros (ou ele é que seria dos cachorros?) e headphones grandes, caminhando lentamente enquanto curte seu som.

Há uma família de gordinhos (julgo serem pai, mãe e filha) que é engraçada. Ele anda sempre na frente. Não por ser mais rápido, pois a distância se mantém a mesma. Acho que não gosta é do assunto.

Tem o irmão da Gigi, o Marcos. Parece que descobriu o horário e o lugar há bem mais tempo. Assíduo como eu.

Aos sábados e domingos, é possível encontrar resquícios da noite. Gente que amanheceu na praia para ver o sol nascer. Carros fechados exalando maconha. Casais de namorados ainda nos bancos do calçadão. Mas tudo família, até hoje. Um cara, provavelmente ainda bêbado, fazia o número-um atrás de um trailer enquanto um vira-lata produzia o número-dois logo ao lado. Se eu fosse um pouco mais cara de pau, teria a melhor foto de todas.

E assim dá para conhecer mais os personagens desta vida, os cenários da nossa cidade e assimilar alguns aprendizados, como: toda a bolha sempre vira um calo.

Tronco e Cetim

O Coelho ficaria poucos dias na cidade e queríamos fazer um clipe. Trata-se do seu disco solo — Aclive — ainda em fase de finalização. Como todo pelotense que vai morar fora, o Laranjal acaba representando a saudade e servindo de âncora para as lembranças da terra natal. E foi onde gravamos, em menos de 20 minutos, as cenas. A ideia central era ser uma captação ao vivo de dois momentos em separado. Tosco como a gente, mas sincero e cheio de vontade de realizar.

A música de Kleiton & Kledir para Pelotas

Tenho dificuldade de entender letras diretas demais. Prefiro aquelas que não dizem tudo na cara, que deixam margem à imaginação. Aquelas que, mesmo que eu não compreenda totalmente, me dê a liberdade de fechar os olhos e pintar o quadro que quiser. Esse sou eu, músico.

Não entendi a exaltação da plateia quando Kleiton & Kledir tocaram, em primeira mão, a ode a Pelotas, no palco do Guarany, há quase dois anos atrás. As pessoas puseram-se de pé. Aplaudiram entusiasmadas. Ovacionaram. E eu perplexo. Não engoli o “pa-ra-le-le-pí-pe-do”. Me desceu atravessado. Nem o “bem-casado” e o “cristalizado” foram mais palatáveis. Citar todos os locais da cidade com didática de um livro escolar não me convenceu.

Semana passada recebi de várias pessoas o link do YouTube para assistir o clipe da canção. Todos adorando e eu, novamente, engasgado, cético, aturdido pela inocência das pessoas. Confesso: até gostei do “dia de jogo” e do “merece”. Mas não era possível que bastasse fazer uma lista com todos os locais da cidade, organizá-los em versos e rimar Areal com Laranjal para que o sucesso fosse garantido.

Gravei o especial deles no Canal Brasil, que passou há uns 3 meses. Resolvi ver hoje. Apresentaram as músicas do novo trabalho. Depois de um grande período sem álbum novo, estavam de volta.

Na minha memória, o último registro que valia a pena da dupla era o disco que trazia a versão para “Bridge Over Troubled Water” e a música “O Analista de Bagé“, entre outras. Tudo que veio depois, parecia uma tentativa frustrada de ser o que não eram mais. Faltava o frescor, o descompromisso, a ingenuidade e a sinceridade.

Mas lá pela terceira música do especial, algumas frases melódicas, algumas sequências de palavras, algum sorriso, sei lá… Algo fisgou aquele guri dentro de mim, que pelos oito anos ouvia os LPs dos Ramil na casa de minha tia, e que acompanhava as letras dos encartes, verso a verso; que decorara as vírgulas e as respirações de cada faixa; que descobria a música de uma forma tão peculiar, com histórias de um lugar tão perto, mas tão perto, que parecia estar dentro de mim. E pior que estava.

Em frente à casa da minha tia, na Rua Apolinário Porto Alegre, onde passei muitos Natais, onde furei os vinis de tanto ouvir, certa vez estavam Kleiton e Kledir. Esperavam o Papai Noel chegar na casa de algum parente que eu não sei bem quem era. Meus primos todos foram falar com eles, pedir autógrafo. Mas não eu. Fiquei espiando de trás da porta, com minha timidez eterna, minha reverência esquisita.

Lembrei disso agora, não sei por quê. Na verdade, nunca esqueci, mas as novas canções do especial da TV me fizeram reviver. O tempero original estava ali. Era Kleiton & Kledir de volta, como antes. Muito material bom e cheio de inspiração. Quando tocou a homenagem à musa Pelotas novamente, mais explícita ainda, por conta das fotos ilustrando cada esquina, cada bairro, cada monumento citados, meu coração já estava aberto, destrancado, aceitando qualquer rima previsível, qualquer palavra óbvia, qualquer melodia repetitiva. Baixei a guarda e juntei-me àquela plateia de pelotenses ufanistas de dois anos atrás. Só não aplaudi, nem gritei porque minha mulher estava dormindo ao lado e as crianças no outro quarto.

Daqui a pouco, minhas filhas irão começar a ter as experiências musicais que levarão para sempre. Quais delas terão o poder de destrancar a fechadura de seus corações e torná-las alvos fáceis da emoção boba e inexplicável?