A Ira de Dona Neide

É difícil um padre jovem durar mais do que três ou quatro anos na mesma comunidade. Não sei por quê. Onde Seu João e Dona Neide vivem não é diferente. Casados há mais de 60 anos (ambos já estão quase nos 90), são extremamente ativos. Moram há 12 no mesmo lugar e já viram três sacerdotes assumirem a igreja que frequentam. O anterior acabou se juntando com uma fiel quarentona, formosa e endinheirada — “Ah, o amor! Esse sentimento lindo capaz de tirar um homem de Deus do seu caminho!” Uma verdadeira decepção para Dona Neide, que confiava cegamente naquele homem. Seu João apenas balbuciou: “É… fazer o quê?” Mas as coisas sempre podem melhorar. Depositam agora toda a fé e confiança no novo substituto e discípulo do Senhor, o Padre Marcos.

Criados com os fortes hábitos religiosos da primeira metade do século XX, quando a missa era em latim e nem sabiam o que entoavam, Seu João e Dona Neide são hoje uma espécie de resistência católica. A juventude não dá mais bola para igreja e, quando faz, costuma pender para o lado evangélico. Quando não podem ir ao culto por algum problema de saúde, o padre vai à casa do casal; atende a domicílio. Digamos, “benção delivery” — é, a igreja tem que se reinventar. Ele dá a comunhão e, claro, aproveita para filar um café da manhã lá pelas 10h, porque ninguém é de ferro. Isso acaba atrasando o almoço, servido costumeira e pontualmente sempre às 11h30. Mas para Seu João, a presença do Padre é mais importante que o horário da refeição e que os remédios que precisam tomar antes de comer. Padre Marcos é o símbolo máximo da devoção que têm a Deus. Não dão tanta bola assim nem para o Papa — “ainda mais agora que parece que é um argentino, vê se pode”.

Todos sabem da dificuldade que um sacerdote enfrenta em uma nova comunidade. Seu João e Dona Neide mais ainda. Além de, geralmente, estar em “início de carreira”, recebe do anterior a paróquia na pindaíba, tanto financeiramente quanto em número de fiéis descrentes. O trabalho é dobrado e o dízimo escasso. Esses cafés da manhã e almoços nas casas das famílias locais acabam sendo divinamente providenciais. Não é só pelo alimento que nutre o corpo nem pela companhia que revigora o espírito, mas é o momento em que o pároco pode chorar suas mazelas aos velhinhos devotos e conquistar um pouco de sua compaixão. Já imaginaram um padre, sozinho em uma nova cidade, sem ter uma máquina de lavar roupas? Dona Neide chega a suspirar de pena — houve épocas da vida em que teve duas simultâneas, para dar conta do serviço! Mas Seu João não deixou por menos e deu ao Padre Marcos a bendita máquina de lavar. Agora, sim, ele pode dedicar-se mais à pregação da Palavra e está sempre limpinho, cheiroso e bem apresentável. Seu João também já presenteou-o com um forno de micro-ondas, não para a paróquia, mas para seu uso pessoal. Alguns boletos vencidos em nome da igreja também foram pagos por Seu João e, por vezes, um filho interceptava ligações de cobrança de dízimos para a casa do casal. A família, desconfiada de tamanha gastança, se pôs a investigar. “Mas é tudo em nome de Deus”, alegou Dona Neide.

Um dia, padre Marcos resolveu marcar uma janta. Na casa do casal, claro. Certamente traria um vinho, de missa, para ser gentil. O casal preparou sua melhor receita, colocou à mesa sua melhor louça — aquela que só padre merece. Dona Neide fez seu sagu supremo, elogiado por toda família. Não foi trabalho simples: ela precisa de andador para se locomover com um pouco de autonomia. Estava marcado para às 18h30. Já eram 19h30 e nada do Padre Marcos aparecer. A filha, de passagem, se deparou com aquela mesa linda, como não havia visto nem no batizado da neta mais nova, e questionou. “É que o Padre vem jantar, mas está um pouco atrasado.” Já eram 20h.

— Vocês não vão ligar pra ele?
— Calma, filha. Se disse que vem, ele vem.

Lá pelas 21h30, o sono batia. Resolveram telefonar. O Padre estava em Brasília, provavelmente com o Bispo. Havia esquecido o compromisso na capital e, coitado, não conseguira avisar os anciãos. Vossa Excelência Reverendíssima merece todo respeito e consideração. Pena que não sobrou um pouco para Seu João e Dona Neide.

Duas semanas depois, repetiu-se a mesma cena com um almoço agendado. Os filhos, já sabendo das histórias, não pouparam críticas ao comportamento ingênuo dos pais. Inclusive, em uma missa delivery, para a qual toda a família estava convidada, nenhum apareceu nem para agradar os dois, tamanha a restrição que estavam nutrindo pelo agente de Deus.

Dona Neide — como se ela é que devesse desculpas a Padre Marcos — ordenou ao marido que a ajudasse a preparar uma quantidade enorme de cueca-virada, de modo a encher um pote plástico, dos grandes. A palavra dela é uma ordem para Seu João, mesmo quando está cansado. Depois de uma tarde inteira preparando o doce regalo, foram à igreja. Após o culto, com um sorriso no rosto, entregaram ao pastor. Ele não se fez de rogado e comeu duas ali mesmo, sujando o hábito de canela em pó e agradecendo de boca cheia.

Mas mal sabia Dona Neide que logo, logo, Padre Marcos viria a ser seu maior desafeto. Não foi a exploração do dízimo exorbitante nem foram os presentes que aceitou em benefício próprio, também não foi o almoço nem o jantar nos quais simplesmente não apareceu. O que de fato fez Dona Neide lançar ao Padre toda sua ira e decepção teve a ver com as cuecas-viradas: ele nunca devolveu o tupperware vazio. E era dos grandes.

Meu Deus É Um Bundão

wise+man[1]Todo mundo tem alguém com quem conversa. Alguém dentro de si com quem troca ideia, pondera as coisas, mantém um diálogo intenso e constante. Durante algum tempo chamei isso de consciência.

Mesmo tendo estudado em colégio católico, sempre me considerei ateu. Mas o tempo passa e gente vê tanta coisa na vida — vislumbra realidades, pessoas com as mais diversas crenças, energias que movem o mundo, sente coisas que nunca sentiu, vai ficando velho e com medo de morrer — que passa a considerar a hipótese de que algo maior existe. Também dá para chamar isso de cagaço. Não é bem aquilo que nos incutiram na escola e nem o que tentam nos vender diariamente pelas ruas e televisão. Eu, pelo menos, comecei a criar minhas próprias crenças energéticas e espirituais. Algo para me confortar. Não é nenhuma doutrina. Não daria para escrever em um livro, muito menos neste post. Nem sei se consigo discuti-las com alguém, pois são tão etéreas e pessoais que eu não teria vontade. É um emaranhado de sensações e sentimentos que às vezes faz sentido, outras não, e que vou moldando diariamente. Muita gente pensa assim; tem sua própria forma de ver e explicar as coisas.

Outro dia parei para pensar se esse meu deus tinha forma, se tinha voz, onde ele passava os dias; se ele era físico, uma energia, um suspiro ou uma canção. Descobri que sei exatamente como o meu deus se parece. Fiquei bastante surpreso e decepcionado comigo mesmo. Quando converso com o meu deus, vejo um velhinho, gordo, barbudo, de cabelos brancos, que mora em uma nuvem e fica sentado em um trono grande de madeira. O meu deus é o mais babaca e lugar-comum que podia existir. Ou seja, provável ser a imagem de mim mesmo.

Fundar Um País?

bandeiraE se eu fundasse um estado ou um país? Seria massa.

Nenhum órgão fiscalizaria meus atos. Não deveria prestar contas a ninguém. Poderia ser membro das Nações Unidas e pleitear recursos de algum projeto em prol dos países subdesenvolvidos — pro meu! Mas abdicaria do meu direito de voto, para não complicar nem correr riscos de cometer algum incidente diplomático. Meu blog seria o Diário Oficial e meu mp3-player a rádio estatal. A segurança eu mesmo faria. Se houvesse alguma ocorrência maior, como arrombamento da porta da minha casa, pediria auxílio à ONU. Afinal, seria uma questão de invasão de fronteira. Os Estados Unidos certamente viriam me proteger, bons samaritanos que são.

Criaria minha própria moeda. Ou melhor, adotaria uma existente e estável. Teria câmbio e regras fiscais próprias, que me favorecessem, claro.

As importações estariam liberadas, sem cobrança de taxas alfandegárias. Chegaria todo dia um pacote da Deal Extreme, sem necessidade de custar menos de US$ 50. Chocolates belgas, bacalhau norueguês, eletrônicos a preço de banana. Compraria o melhor do mundo por um preço inacreditável. Em troca, exigiria acordos comerciais que me permitissem exportar meu trabalho para o mundo inteiro sem incidência de impostos.

Teria hino, brasão e bandeira. Desfilaria na abertura dos Jogos Olímpicos e representaria meu país em qualquer esporte para o qual conseguisse um índice olímpico. Vale Wii Golf?

Seria famoso, claro — “o país de um homem só”. Poderia vender camisetas, bonés, canecas, mouse pads. Criaria um canal de donativos conhecido como Óbolo do Cuca. Não confundir com “lóbulo do Cuca”.

Não é má ideia. Se o Vaticano conseguiu…

(a bandeira acima criei randomicamente neste site.)