Raquelzinha no Paraguay (parte 2)

(continuação do post anterior)

O homem estava com a cabeça baixa, contando o dinheiro. Eu cheguei perto. Ele nem me olhou. Comecei a falar. Ele não levantou a cabeça: “sou a Raquel. O senhor prometeu me devolver o dinheiro. Eu vim buscar.” Ele parou de contar o dinheiro. Não olhou na minha cara. Respirou fundo. Pensei que ele fosse tirar uma arma de baixo do balcão, como acontece nos filmes. Mas não. Ele voltou a contar o dinheiro. Separou um montinho e me entregou. Apesar de eu estar bem perto, ele pediu para uma das funcionárias cor-de-rosa fazer a entrega: “dá pra ela.” E, novamente, ficou mudo. A menina me deu o dinheiro e eu fui embora. O Seu Muhamed era legal. Pelo menos pareceu legal comigo. Era quase como se fosse meu “amigo”. Agora, eu podia ir embora, ou quase.
Além de toda a minha função, eu tinha ido para o Paraguay com uma encomenda de uma amiga – trazer a câmera mais barata que eu encontrasse para ela dar aos filhos. Comprei uma por 99 dólares e voltei pro ônibus. Só que ainda não iríamos embora. O ônibus precisava esperar até a hora combinada para partir. Aos poucos, os passageiros retornavam com suas sacolas e iam sabendo do meu feito: “O quê? A Raquel conseguiu o dinheiro de volta? Eu nunca vi isso acontecer em 20 anos que trabalho nisso.” A hora marcada chegou, mas duas pessoas ainda não tinham voltado. Não interessava, era preciso partir, como o combinado. Jogaram as malas deles para fora do ônibus para pegarem depois no estacionamento. É assim que eles fazem. Quem pensa que os problemas tinham acabado se enganou. Estavam apenas começando.
A volta, para quem traz muamba, é sempre mais tensa do que a ida. Na ida, o perigo é de assalto. Na volta, a apreensão da mercadoria é que preocupa. Aquela era a maior compra do ano deles. Todos eram camelôs e estavam com o dinheiro ganho do Natal. A cada carro que ultrapassava, a cada posto policial, o perigo era iminente. Eu estava tranqüila, afinal, não tinha comprado nada de valor nos “hermanos”; pelo contrário, tinha vendido! Eu só tinha dinheiro e ninguém assalta um ônibus na volta, porque não há grana alguma. Foi quando me dei conta: eu era a única a ter dinheiro; a única que teria como, sob pressão dos viajantes, oferecer uma, digamos, “gentileza” aos policiais no caso de uma batida. “Ah, não! Perder o meu dinheiro, não!”
E não é que mandaram parar o ônibus, bem na última barreira? Eram cerca de 2 da madrugada e nós já estávamos no Rio Grande do Sul. “Desce todo mundo do ônibus!”, gritou o policial. O pessoal da excursão já era todo meu amigo e me alertaram para esconder a camerazinha. Iriam revistar primeiro as mulheres. Então, eu dei a câmera para o motorista. O manual, coloquei dentro de um banco rasgado. Em troca do favor do gentil condutor, depois da revista feminina, enchi meus braços de relógios, as calças de placas de computadores e a mochila de controles de videogames, além de colocar a camerazinha da minha amiga na calcinha. Ninguém iria procurar ali. As revistas continuaram. Tiraram as sacolas do ônibus, averiguaram todo o veículo e acharam o manual que eu tinha escondido. O oficial perguntou em voz alta: “onde está a câmera desse manual?”. Todo mundo sabia que a câmera era minha. Raciocinei o mais rápido que eu conseguia e inventei uma história: disse que havia levado para consertar e que os manuais eu não tinha devolvido. Eles não acreditaram. Pediram para ver a minha mochila. Me seguraram pelo braço e descobriram os relógios e os controles de videogame na bolsa. Eu jurei pra eles que eu não era contrabandista; que eu era jornalista. Pediram para ver meu registro, mas eu não tinha. Encontraram uns remédios que eu tomo sob prescrição médica na minha bolsa e pediram a receita. Eu também não tinha. “Você sabia que tráfico internacional de medicamentos é pior que contrabando?”. “Ai, meu Deus!”. Eu tava ferrada. Expliquei direitinho, fiz cara de choro, implorei e disse que eu não era camelô. Fiquei dizendo isso o tempo todo. E parece que funcionou, pois eles acreditaram em mim. Não sei como, mas eu consegui. E nem precisei usar o meu dinheiro (é claro que eu nem faria isso). Ainda salvei as placas de computador do motorista. Mas deram cota zero para todo o mundo e apreenderam o ônibus. Coitado do pessoal.
Eu estava em uma cidade desconhecida, mas lembrei que tinha um amigo que morava lá e liguei pra ele. Ele era da aeronáutica e foi me buscar de uniforme. “Que vergonha!”. Parecia que eu estava acorbertada por gente graúda. Ele me emprestou dinheiro para a passagem, pois eu só tinha dólares, e voltei pra minha cidade de ônibus de linha. Eu estava há 3 dias sem dormir e comer direito. Ah, e sem tomar banho, também. Pobre da câmera da minha amiga.
No final das contas, resolvi comprar o equipamento que eu queria de São Paulo. Paguei três vezes mais, mas não me arrependi. O trabalho que fiz para essa grande empresa foi incrível; uma das experiências mais importantes da minha vida, depois da viagem ao Paraguay, é claro.

3 comentários em “Raquelzinha no Paraguay (parte 2)”

  1. Meu Deus!!! So com a Raquelzinha pra acontecer tudo isso! E o pior que eu indiquei um cara que vai pro Paraguay, sera que foi ele??? Eu tenho uma parte de culpa nessa historia??? socorro! :)

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