Turbulência

Maldita companhia aérea. Só pode ter sido um equívoco no check-in, é claro. E não conferi. Colocaram eu, minha mulher e minha filha de 3 anos na mesma letra e não no mesmo número de poltronas: 8E, 9E e 10E. Ou seja, um bem atrás do outro; no meio, só para piorar. Graças a um simpático senhor, trocamos para que as duas sentassem uma ao lado da outra. Fiquei entre uma senhora que fazia palavras-cruzadas compulsivamente (na 10F) e uma mulher do-tipo-esquisita (na 10D). “Personagem do Chico Anysio cujo bordão é ‘jovem é outro papo’, cinco letras: ‘Jovem’.

“Do-tipo-esquisita”, nesse caso, significa que ela usa All Star de cano baixo, camiseta preta de banda (que não ousei verificar qual, para não olhar fixamente para os peitos da passageira) e calça surrada. Ah, e a barriga de fora. Algo meio indecente para uma não-tão-jovem, de seus 40 anos, um tanto quanto fora de forma. Ela começa a ler uma Superinteressante e eu a minha Rolling Stone. Percebo que, como eu, tem o hábito de folhar de trás pra frente. “Tá bem…” Dá risadas esporádicas, provavelmente, por causa do característico estilinho bem-humorado do texto. Depois de uns 20 minutos de leitura, ambos guardam suas revistas nos respectivos bolsões das poltronas da frente, sincronizados. Em alguns segundos, ela me aborda: “vamos trocar?” É claro que sim. “Eu tenho esta Super em casa, mas ainda não li tudo.” Ela diz: “eu só leio a Super, a Rolling Stone e a Vida Simples”. “Eu não leio a Vida Simples, mas minha mulher lê.” Leio de tabela. Dá vontade de dizer que meu banheiro é lotado dessas três revistas, mais a Veja, e perguntar se ela também cultiva essa mania info-intestinal. Do outro lado, “gás involuntário emitido pelo intestino (culto), cinco letras: flato.”

Certamente, ela não lê Veja. Deve achar uma ferramenta capitalista de manipulação da massa semi-intelectualizada. Deixo pra lá. Ela vê uma foto do Axl Rose e me pergunta: “o quê? Este aqui é o Axl Rose?”. “É. Ou o que restou dele, depois de 15 anos gravando o Chinese Democracy.” Do meu lado direito, “ouro, elemento químico, duas letras: Au.”

O comandante avisa: “senhores passageiros, por favor, apertem os cintos, pois entraremos em uma área de instabilidade.” Mal dá para respirar e o avião começa a pinotear de um lado para o outro de uma forma que eu jamais experimentei. De repente, uma grande queda. A aeronave perde altitude de forma brusca. Uns três segundos que parecem uma vida e, no mínimo, calculo, uns 300 metros. É suficiente para, no reflexo, me agarrar na poltrona da frente e sentir aquele frio na barriga, comum nos parques de diversões. Sensação inédita para mim em um meio de transporte. Minha filha não demonstra reação. Tudo na paz. Na 10F, a senhora esboça um singelo “ai”“interjeição que caracteriza dor, duas letras”. Mas foi um susto tranquilo. Realizei que nunca vi um avião cair por problemas meteorológicos. “Normal”, penso. Já conheci um comissário que bateu com as costas no teto do avião em uma situação mais forte do que essa. Eu falo gracinha para a do-tipo-esquisita: “no desembarque irão cobrar o adicional por emoção”. “Aquele que gosta de aparecer, oito letras: saliente.”

Tensão superada, minha filha olha pra trás. “Muito louco o teu brinco!”, elogia minha companheira de viagem. Só para constar, é um brinco extremamente convencional; de criança. Ela se encanta com a menina, abre sua bolsa e começa a dar tudo que encontra pela frente: passadores, elásticos de cabelo — uns 15 elásticos de cabelo!

“Tá, eu não devia te contar, mas tenho um amigo que trabalha no tráfego aéreo de Brasília…” e me narra uma parte da transcrição do conteúdo da caixa de voz do Legacy envolvido no acidente que não vi publicada por nenhum jornal. Não cabe reproduzir aqui. “Objetivo do futebol, três letras: gol.”

Depois do pouso, ela surrupia a revista da companhia e diz que o filho adora Beach Boys: “Tem uma matéria com o fundador da banda aqui!” Nessa hora, a senhora da 10F já acabou todas as palavras-cruzadas e faz, absorta, a última marcação no jogo dos sete erros. Ah, um Coquetel tem o seu valor!

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