Ainda Estou Aqui (com spoilers)

Assisti “Ainda Estou aqui” sob a perspectiva do Oscar. Sabemos que não é um prêmio que importa para a arte, mas para a indústria cinematográfica nacional. Foi assim com “Quem quer Ser um Milionário”, dando visibilidade mundial a Bollywood. Foi assim com “Parasita” e o cinema coreano. Pode ser assim para o Brasil também. Pensando dessa forma, até que importa, sim, para a arte nacional.

A campanha de marketing que estão promovendo internacionalmente para que o filme de Walter Salles seja um dos indicados é a maior que presenciei na história do cinema brasileiro. Isso criou uma aura de euforia que estimulou ainda mais minha curiosidade.

Como meu trabalho diário inclui o audiovisual, criação de roteiros etc., é impossível entrar em um cinema e não prestar atenção nas questões técnicas, nas escolhas de adaptação do livro, nos enquadramentos, nas atuações, do que era real e no que é adorno necessário a qualquer história. Isso é ruim, porque tende a me afastar da essência; daquilo que se pretende que o expectador sinta. O pensar, muitas vezes, nos distancia do sentir.

Vou começar o papo pelo jeito que iniciei a assistir; pelas percepções frias. Ficar pensando no que os jurados da Academia levam em consideração para valorizar uma película guiou minha crítica em tempo real, cena a cena.

Muita gente em quadro em todas as situações do primeiro ato — a família era grande, cheia de amigos. Será que isso não é estranho comparando com outros vencedores que, geralmente, tirando figurantes, não exploram tantos protagonistas? A felicidade extrema da família, não é um exagero? Seria para mostrar que “comunistas” não são comedores de criancinhas? Ou será que era só para criar um contraste com o que viria a seguir? Afinal, o fato mais marcante é que não poderia ser apelativo demais, ou seria julgado pelo excesso e levantar críticas ideológicas desnecessárias.

Fernanda Torres, que também está cotada com boas possibilidades de indicação ao prêmio de melhor atriz, deu um show. Desnecessário discorrer sobre isso. Mas optou, muitas vezes por uma atuação levemente teatralizada e pouco naturalista. Note que não me refiro a exagero de emoções — ela foi sublime —, mas à técnica. Não há problema algum com isso. Analisava assim: “Parece que está atuando? Parece.” Fiquei pensando sobre qual estilo de interpretação ganha mais estatuetas.

O cachorro, que não existia de fato, foi inserido com uma função. Será que sua morte, que representa objetivamente o entendimento da família sobre a passagem do pai e a virada de chave, não deveria ter vindo um pouco depois? Das pessoas com quem conversei, só eu achei isso. Só eu também interpretei dessa forma a mensagem desse acontecimento. Pode ser apenas a minha leitura.

A forma como os agentes do governo são apresentados é interessante. São sempre cordiais, agradáveis, até quando estão interrogando Eunice. Não foram nem mesmo eles que atropelaram o Pimpão. O medo se apresenta nas entrelinhas da ocupação da casa, nos sons vindos das celas vizinhas durante a prisão e o interrogatório, nas gotas de sangue pelo chão e na escuridão do lugar. Os soldados até lavam o chão para ficar menos pior. Tem até o guarda camarada e preferido de Eunice. A função seria compatibilizar o filme com o pessoal que releva a ditadura? Humanizar as pessoas ao mesmo tempo que condena o regime? Criar mais identificação e menos críticas de quem pensa diferente? Escolhas… Escolhas…

Na minha sessão de cinema, chuto que 80% eram de pessoas com mais de 60 anos. Gente que era adolescente ou jovem na década de 70. Prestei atenção em suas reações. Se identificavam com as músicas, com a voz de Cid Moreira na TV, com as piadinhas e expressões típicas, com as menções a Gil e Caetano. Nostalgia pura, como a que tenho quando assisto De Volta para o Futuro. Eu era adolescente na década de 80. Fiquei imaginando com o que a emoção das demais pessoas ressoa com o filme. Minha mulher lia muito sobre a ditadura, se identificou com isso. Minha filha de 15 é superpolitizada para a idade e gosta de coisas vintage. Se identificou com o momento histórico e, claro, com a câmera Super 8, com os discos de vinil, vitrola e com as músicas. Minha filha de 20 está fazendo Cinema. Não precisa nem dizer que deve ter assistido com pensamentos parecidos com os meus. Apesar do filme tentar escapar ao máximo da discussão política — mesmo sendo impossível e até necessária essa conversa — gostaria de saber a opinião de pessoas com ideologias distintas. No que se apegaram? Gostaram ou não? Não consigo deixar de lembrar da já clássica e hilária frase-meme do personagem do Daniel Furlan no Choque de Cultura: “Eu sou contra esse filme!”

Depois de passar boa parte da projeção embebido nas tecnicidades, em determinado momento, minha mente objetiva foi vencida e me vi entregue. O filme me dobrou. É difícil de explicar a porrada com que ele bate. E bate forte! Nem foi porque Rubens Paiva tinha um semblante parecido com o de meu pai (Viu? Cada um tem os seus próprios pontos de acupuntura). É uma história necessária de ser contada e retratada do jeito que foi, lembrando dos fantasmas mas enfrentando-os com coragem e pragmatismo. Eunice é mostrada assim. Não preciso ir além sobre a força dessa mulher. Todo mundo já o fez.

A hora em que Marcelo aparece autografando “Feliz Ano Velho”, seu primeiro livro, foi emblemática para mim, porque conecta dois momentos da história dele. Criança na época da prisão do pai, surge adulto, da forma como levaria a vida, amadurecido, agora em cima de uma cadeira de rodas. Conectou com a minha história também. Foi o primeiro livro de temática adulta que li, ainda adolescente, sob insistência da minha mãe — e adorei! Relação pequena e desproporcional, mas ainda assim, uma relação. Acupuntura.

Sobre o ato final, já sabia o que me esperava. A mídia tinha contado. Era Fernanda Montenegro, cujo Oscar havia sido perdido (ou roubado) anos atrás (procure o motivo dessa minha declaração no Youtube). Em dois segundos de seu rosto na tela, com o semblante perdido, eu já estava acachapado. Simplesmente, não conseguia encará-la! Era como se estivesse disparando a história de todo filme, a história recente de todo um país, com raios saindo de um olhar inerte, de bochechas caídas. Era um take de uns 30 segundos, eu acho. Não sei! Parecia uma eternidade! Eu desviava o olhar para não começar a soluçar desesperadamente no cinema. Como pode?! A gente sabe o que vai aparecer. A gente até viu na divulgação. Mas quando aparece, te pega com aquele contexto todo vivo na cabeça.

Estamos acostumados a ver Fernanda Montenegro. Ela tem um estilo, uma cadência de falar. Ela é muito boa. É excelente! Sabemos o que esperar dela. Mas aos 94 anos de idade, nos surpreender com uma cena dessas? Sem palavras, sem respiração! Era só o olhar, as bochechas, as rugas, — sei lá — os cabelos! Não sei que partes do corpo estava usando para expressar tudo aquilo.

O Alzheimer aqui traz uma conotação adicional à realidade da história. É também uma metalinguagem de que o filme serve para não nos esquecermos dos fatos; para que, mesmo que mudemos de assunto, o essencial deve permanecer em nós, como cidadãos, como pais. Eu costumo dizer que cultura é tudo aquilo que sobra quando alguém perde a memória. Talvez não seja exatamente assim, mas o conceito veio a calhar. A protagonista, mesmo sofrendo da doença, mostra que ainda resta uma chama acesa para o que realmente importa; uma fagulha que acende de repente e reaquece o espírito.

Não sei se “Ainda Estou Aqui” será indicado aos Oscars de Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Filme, Melhor Atriz, mas ficaria muito feliz que Fernanda Montenegro tivesse uma improvável indicação e ganhasse o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante apenas por essa cena. Seria a melhor desforra de todas, um marco para o cinema mundial e o coroamento da maior atriz (desconsiderando gêneros) que o Brasil já teve. Se pudessem escolher um só prêmio para o filme, tenho certeza que Fernanda Torres e Walter Salles também optariam por esse. Certeza.