O Bilhete

Esbarraram-se em frente ao elevador. Sentiu a mão dela, discreta, no bolso de seu casaco. De certo deixara um bilhete, uma mensagem secreta. Cada um foi para seu lado. Ele para a Ouvidoria, ela para a esquerda. Nunca haviam trocado uma só palavra. A não ser quando pretendeu o ramal 13, mas ligou para o 31. “Sim?”, “Ã… Almox?”, “Não, Expedição”, “Ah, desculpe”. Às vezes cruzavam-se pela portaria, pela porta giratória de vidro. Um saindo, outro entrando.

Ela era esquisita. Nem sempre bem vestida. Ele estava curioso sobre o bilhete, mas não podia checar a nota na frente dos colegas. Poderia ser uma denúncia. Sentou à mesa e iniciou sua rotina. Sentia-o em seu bolso, mesmo um simples pedaço de papel. Tinha algo ali. O calor daquela mão ainda marcava sua cintura. Se lesse na frente de todos, despertaria atenção. Todos viram o esbarrão. Os da Ouvidoria não deviam relacionar-se com nenhum funcionário de outros setores, ainda mais sorrateiros, como ficaria a impressão. Precisavam ser justos e imparciais. Baixou seus emails. Respondeu os mais simples. Não havia espaço em sua mente para os complexos. Faltavam três horas para o fim do turno. Sua cabeça ocupava-se com a imagem de um recorte de caderno pautado, escrito com caneta azul, dobrado em quatro. Poderia trazer apenas um nome que o levasse a uma investigação. Quem sabe um número de telefone? Um endereço? Algo sobre o colega do lado? Sobre seu chefe direto? Toda discrição era pouco. Pensou em ir ao banheiro e ler, mas por segurança até as cabines eram vigiadas. Seu telefone tocou. Era uma solicitação de algo que não entendeu muito bem, mas concordou. Estava focado no bilhete. Não conseguiu fazer nada produtivo naquele dia. E se fosse pra casa alegando mal-estar? Claro que despertaria atenção. Estava controlando até seu semblante, fingido passividade e leveza, dando algum sorriso esporádico provocado por um possível email bem-humorado. E assim foram-se as horas.

Desceu no elevador com alguns colegas. Seu bolso pulsava. Despediu-se. Bateu o ponto. Antes de entrar na garagem do prédio, espiou para a Expedição. Ela estava lá, com a cabeça baixa, empacotando alguma coisa. Não o viu. Ela era mesmo esquisita, porém simpática. Entrou em seu carro com vidros escuros. Por um momento pensou estar protegido das câmeras de vigilância, mas o tempo anormal que levaria parado para ler causaria estranheza. Tudo era vigiado. Sabia melhor que ninguém. Deu partida e seguiu seu trajeto habitual. Checou pelo retrovisor. Não havia ninguém em seu encalço. Não aguentaria até em casa. Dobrou em uma rua sem saída, estacionou. Deixou o motor ligado, caso precisasse arrancar de repente. Colocou a mão no bolso. Sentiu o papel. Ele ainda estava lá. Existia de fato. Não fora só sua imaginação como chegou a cogitar. Mas não se tratava de um bilhete.

Era uma bala de coco. Ficou confuso. Depois, feliz.

Foi dormir pensando o quanto ela era esquisita de fato.

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