Queimadura

Eles têm um calefator de dupla combustão. Uma gentileza, sem dúvida, para os clientes que vêm jantar com esse frio todo. Penso em sentarmos à mesa mais próxima para aquecer meus pés congelados, mas lembro das experiências com o que temos em casa. Já queimei as pernas algumas vezes me acomodando perto demais. Na hora não se percebe, mas dois dias depois a pele aparece vermelha, começa a escamar e faz casquinha. Uma violência que a gente não se dá conta. No mínimo, um metro de distância é o indicado. Vamos para a mesa ao lado.

Já estamos jantando quando uma família entra no restaurante e se encanta com o aquecedor à lenha. Sem dúvida não são daqui. “Vamos sentar nesta, que tá uma delícia! Aqui eles precisam disso, viu?” O garçom tenta orientar para que escolham outro lugar, mas, como se diz, “o cliente sempre tem razão”.

As duas mulheres do grupo ficam com as costas a um palmo do ferro quente. Está na cara que não vai dar certo. O funcionário, sem jeito, volta da copa e insiste outra vez. Relutantes, afastam-se uns 10 centímetros e seguem se aquecendo. A distância ainda é curta. Amanhã vão começar a sentir as consequências.

Estou naquele dilema: sei que devo tomar uma atitude mas fico com receio de como receberão minha abordagem. Como falar?

— Senhoras, estão muito perto do calefator. Vai causar uma queimadura que só perceberão depois.

Azar. Não é da minha conta. O garçom já orientou. Quem sou eu pra me meter? Ao mesmo tempo, sinto-me no dever.

— Boa noite. Eu tenho um desses em casa. Algumas vezes já me queimei sentando tão perto.

O prato deles chega. Não vou atrapalhar agora. Imagina fazê-los trocarem de lugar com o pedido já servido. Demorei demais.

Pago a conta e passo por eles.

— Mas essas picanhas vão ficar passadas, hein?!

Mentira. Não falei.

O dia da minha formatura

auditorium benches chairs class

Não sei o que é festa de formatura conjunta nem colação de grau. Não que nunca tenha ido nas de amigos nem tampouco não tenha me formado. Falo da experiência de ser “anfitrião” nesses eventos coletivos. Na do segundo grau (ensino médio, hoje) estava viajando. Na da faculdade, vou contar a história.

Cursei Comunicação Social — Habilitação Publicidade e Propaganda, na UCPel. Entrei em 1992, mas acabei me perdendo de minha turma. Não, não rodei. Na verdade, até rodei em uma, mas a disciplina acabou sendo tirada do currículo e não precisei refazê-la. O que ocorreu é que, na ânsia de frequentar matérias mais legais e práticas, acabei antecipando umas e deixando para depois outras que não deveria. Só faltavam dois semestres do tempo regulamentar (quatro anos) mas ainda cinco cadeiras para cursar em sequência. Eram pré-requisito umas das outras. O coordenador do curso não deu mole e acabei entrando pelo cano. Fiquei muitos períodos fazendo apenas uma disciplina… Na real, não lembro bem — ”Não sei. Só sei que foi assim.”

Ao frigir dos ovos, acabei me formando só em 1998 e, sem colegas muito chegados, não estava na pilha da cerimônia da colação de grau e da festa conjunta. Acabei na formatura interna e fazendo uma festa só para mim — o tradicional “coquetel”.

Na minha cabeça, colação interna era uma sala de aula adaptada, com um representante da reitoria sentado à mesa do professor. Receberia o diploma, apertaria uma ou duas mãos e estava feito o carreto. Pois que, na data marcada — um dia de semana à tarde —, estava trabalhando quando alguém me perguntou: “Cuca, e a tua formatura?”. Estava atrasado. Nem tanto, mas para meus padrões virginianos, sim. Saí em disparada.

Era no teatro do Colégio São José, onde nunca havia estado até então. Não imaginava que se tratava, de fato, de um “teatro”. Vislumbrava um estrado e algumas cadeiras escolares na plateia. Mas era um teatro mesmo. Quase com “th” — “theatro”.

Não precisa dizer que cheguei como saí do trabalho, em um dia bem informal na agência. Estava de calça de moletom, daquelas bem folgadas e coloridas. Coisa que nem me vejo usando, mas eu era “xóvem e xóvem é outro papo”. Na chegada ao local, já senti que teria problemas. Só dava gente engravatada, em plena terça-feira (ou o que o valha), em um horário improvável como 15h30, e marcando uns 30 graus. Fui entrando pelo corredor em meio às cadeiras. Eram plumas e paletós de um lado, cheiro de naftalina do outro, maquiagens nos trinques. Todos me olhando e achando que eu fosse o “rapaz do som”. Aliás, nem quem está a serviço em uma formatura se vestiria como eu. São profissionais o suficiente para saber que a forma com que vão vestidos influencia na experiência dos convidados.

Avistei uma plaquinha escrito “formandos”, que reservava assentos nas primeiras filas, e me dirigi para lá. Sentei o mais depressa possível para passar menos tempo em pé. Vergonha em pé é sempre pior que vergonha sentado. Uma senhora com sangue nos olhos, daquelas que gostam de fazer justiça com as próprias mãos, cutucou meu ombro e, com voz afiada, atacou: “Esses lugares são exclusivos para formandos”. Vesti minha cara blasé e, como um estilista de moda trajando modelito tendência para 2030, respondi: “Eu sei”.

Era uma solenidade para diversos cursos ao mesmo tempo. Toda universidade que decidiu não colar grau com suas turmas naquele semestre estava ali. E mais eu, claro, de abrigo roxo.

Na hora que chamaram meu nome, respirei fundo, fingi determinação, pisei os quatro ou cinco degraus para subir ao palco, apertei com vigor umas seis mãos, peguei meu diploma, virei para a foto, fiz um X e fui embora direto. Ah! Essa foto eu queria ter!

Quando cheguei de volta na agência — afinal o dia estava corrido e a tarde ainda na metade — a Dani e a Gigi me deram o recado:

— Tua mãe ligou.
— E o que vocês disseram?
— Que tu tinhas ido te formar.

Me Sinto Estranho

Me sinto estranho parado em uma esquina; esperando por alguém. Não consigo deixar de imaginar que podem questionar o que faço ali; quais minhas intenções. Pego o telefone, finjo alguma consulta. Respiro fundo, demonstrando insatisfação com o atraso de alguém. Movimento-me do meio-fio à parede, inquieto. Afinal, parado, causaria muita desconfiança — não tenho más intenções.

E mudar de sentido enquanto caminho? Seja por um esquecimento de algo que precise voltar e buscar, seja por engano de trajetória mesmo, acabo levando a mão à cabeça pra simular um lapso qualquer. Afinal, quem em sã consciência não tem certeza para onde vai? O que vão pensar?

Também me sinto estranho almoçando sozinho em um restaurante. Não acho tristes pessoas que fazem, afinal é meio-dia e todos comem entre um turno e outro de trabalho. Mas, não sei por quê, deduzo que pensem isso de mim. Prefiro buscar comida a comer fora, mesmo que dê mais trabalho ou leve mais tempo. Na pior das hipóteses, nem almoço. Sentar sozinho, nem em lanchonete.

Por muito tempo também nutria ressalvas em andar com fones de ouvido. Quando adolescente, os walkmans (ou o plural seria “walkmen“?) reinavam, mas poucos os tinham. Não havia essa adesão ao escudo sócio-musical que esses dispositivos portáteis propiciam. Quem usava acabava chamando mais atenção do que se isolando. Deve vir daí meu bloqueio. Prefiro sempre a discrição. Talvez seja um dos motivos pelos quais hoje optei pelos in ear. Recentemente, comprei uns externos muito bons. Ainda estou tomando coragem para usá-los na rua. Me sinto ridículo. No mínimo, estranho.

Mas estranho mesmo, nesses casos, é me importar tanto com o que pensam de mim. Pois, para outros assuntos, na maioria das vezes, estou me lixando. O que você pensa disso?