Mais Preto que Vermelho

Todos vestiram a camisa do seu time. Os de bicicleta, os do ponto de ônibus, os motoboys, os frentistas e os que atravessavam a rua. Os vendedores de jornal e até os descamisados a vestiam. A moça que abria a loja estava com a vermelha. O dono do escritório, com a branca. Um ia pro trabalho com a bandeira nas costas. Eles não estavam comemorando uma vitória. Não celebravam uma contratação, nem a chegada de um novo patrocinador. Não era aniversário do clube e nem tinham subido de divisão. Não havia sido lançado um novo uniforme – cada um usava o que tinha em casa, de anos. Não comemoravam a eleição de uma nova diretoria nem achacavam a derrota de seu rival. Sua sede não estava sendo reformada.

O nome do seu time aparecera nos noticiários nacionais e internacionais, com exposição inédita. Mas eles não celebravam nada. Na verdade, não havia nada para ser comemorarado.

A Vida dos Outros

Fiquei esperando no carro enquanto minha mulher ia na farmácia.

Na parada de ônibus do outro lado da rua, um casal de surdos-mudos discutia. Nunca tinha presenciado uma briga na linguagem dos sinais. Prestei atenção, tentando captar uma palavra (ou intenção), como fazemos quando escutamos um idioma que não dominamos. Em seus gestos, ele indicou a si, passou o dedo no pulso mostrando as veias, fez “não” com a mão e apontou para ela. “Nossa. Ele disse que o sangue dele não é o mesmo dela?!” Um ônibus parou. Cobriu minha visão. Torci para que não fosse o que esperavam. Queria ver mais daquela discussão silenciosa. Não era. “Ufa!”

Com minha interpretação novela-das-oito e freud-shakespeariana de quem nunca teve contato com linguagem dos sinais, era impossível não deixar de imaginar toda a história. Os dois foram criados como irmãos, se apaixonaram, passaram a se encontrar às escondidas, no celeiro da casa na Colônia. Mas ela achava o romance proibido; que estavam cometendo pecado; que aos olhos da família era praticamente um incesto. Ele relutava. Dizia que nem tinham o mesmo sangue; que todo amor era permitido, pois pra que serviria a vida, afinal? Que, se o destino os colocou lado a lado, com tantos outros caminhos possíveis e, se tinham compartilhado esse sentimento tão intenso, não seria a igreja, a tradição familiar, os olhares dos vizinhos ou qualquer julgamento de anormalidade que haveria de os separar.

Segui no pensamento. Estava disposto a enfrentar a todos, mas a fugir também, se preciso fosse. Ela olhou pra ele. Ele olhou pra ela. Ficaram assim, parados, por minutos, sem pronunciar (ou sinalizar) nenhuma palavra (ou significado). Surdos-mudos são bem mais visuais.

Toda a rua era testemunha daquela discussão silenciosa. Outro ônibus parou. Ainda não era o deles. Ela fez um sinal juntando todos os dedos virados pra cima, como quem indica quantidade. Era isso. Continuo a imaginar. Ela disse que fugir era caro. Não tinham dinheiro. Como iriam se sustentar? Ainda eram jovens e inexperientes, principalmente tendo que garantir o sustento da criança que estava por vir. “Claro! Um bebê!” Por isso estavam em frente à farmácia. Ela acabara de fazer um exame de gravidez. Chegou outro ônibus e os escondeu. Quando saiu, não estavam mais ali. Não consegui nem ver qual era a linha.

Minha esposa voltou, reclamando que demorara para ser atendida. Nem percebi. Liguei o carro e fomos embora, deixando outras seis pessoas aguardando o próximo ônibus. Para onde estariam indo?

Olimpiadas (“Olim-piadas”, para quem achou que errei o acento)

Tinha um desenho animado do Pateta que, na tradução para o Brasil, foi entitulado “Olimpiadas do Pateta” (será que estou confundindo com alguma edição especial da Turma da Mônica? Bom, todo mundo usa esse trocadilho). O fato é que o desenho da Disney era muito massa e não passava a toda hora como os outros. Aliás, nem sei se, nas poucas vezes que eu vi, era nas tradicionais sessões matutinas na TV, como de costume.

Alguns acontecimentos das Olimpíadas de Pequim me lembraram do Pateta:

George Bush, assistindo Michael Phelps no Cubo d’Água da arquibancada, ergue a bandeira norte-americana em frente a seu rosto, acha que ela está ao contrário. Inverte, agora sim para o lado errado. Sua acompanhante (esposa?) tenta corrigir, mas ele desconsidera a ajuda como quem diz “sai pra lá, chata”;
– a Geórgia (país que fazia parte da União Soviética e que tá em “guerra” com a Rússia) está repatriando atletas do mundo inteiro para defender suas cores nos Jogos. No vôlei de praia, a dupla georgio-brasileira perdeu para a brasilo-brasileira; na entrevista para a TV, Geor disse que estavam levando um pouco de alegria a seu povo que passa por um momento muito difícil. Como assim? Qual é o povo de alguém que vende sua cidadania para participar de uma Olimpíada?
– ah, não! Não bastasse no Carnaval… Leci Brandão é comentarista do futebol feminino na Globo. Assista um jogo e entenda;
Galvão Bueno falando merda sobre a China na fantástica festa de abertura.

ex-Polegar

O ex-Polegar, Rafael, depois de cheirar todas, fumar tudo e até comer pilha, resolveu agora entrar pro ramo do seqüestro. Só mesmo se mantendo nos noticiários, da forma que for, para que todos lembrem do ex-Polegar. Já do ex-indicador, do ex-médio, do ex-anelar e do ex-mínimo ninguém recorda. Bem que a Eliana tentou, mas tirando fora o polegar, o grupo dos dedinhos caiu no esquecimento.

Reza

Rezou porque estava abalado. Nunca se sabe quando algo vai bater forte. Rezou porque o inexplicável, o inacreditável e o improvável acontecem a toda hora, mas, quando perto, é mais fácil de entender que poderia ter sido com a gente. Isso assusta. Rezou para que tenha sido tranquilo, belo e sublime. Não acreditava que não fosse. Toda a dor, por maior que venha, deve reverter nessa hora.

Quem vai não sofre mais do que quem fica. Rezou por isso também.

Se rezou para pedir por algo que já aconteceu não ter sido uma experiência ruim, é prova que o tempo nada mais é do que um detalhe, uma dimensão, um aspecto da vida. Se rezou, por que não crer também que o passado é só uma peça que ainda pode ser movida? Tudo é possível para quem reza. Rezou do jeito dele; que sabia.

Rezou por quem ficou. Por quem precisa de serenidade e superação. Rezou não sabe bem para quem. Para o deus que estivesse de plantão na hora. Para o deus dentro dele.

Rezou porque não havia mais nada que pudesse fazer.

Gauchos (“gáuchos” para os menos avisados)

Inspirado pelo discurso de Vitor Ramil sobre a estética do frio, escrevi uma defesa de um trabalho para uns clientes uruguaios, que não vemm ao caso agora comentar. Achei bonitinho (e outras pessoas também), então resolvi compartilhar. É simples e curto, porém verdadeiro.

Para o povo do Rio Grande do Sul, principalmente na região sul do Estado, os países do Prata são o quintal da nossa casa. Nossas tradições culturais e hábitos nos unem. Nos identificamos mais com a milonga do que com o samba, mais com o frio do que com o calor, mais com o arroz do que com o feijão. Nosso vocabulário é farto em palavras espanholas que poucos no resto do Brasil compreendem. Falar do Uruguay é como falar de um irmão que foi estudar no exterior, de quem temos saudades. São coisas que não se explica. São coisas da alma. Já no futebol é outra história.

Não somos mais uruguaios do que brasileiros, mas, certamente, somos mais gaúchos do que brasileiros; e tão “gauchos” quanto vocês.”

Visão

As árvores passam rápido e perto. Bastante, até. O canteiro central fica bem próximo à avenida. Não estou muito acima da velocidade permitida. Só um pouco. Como sempre. É trânsito de meio-dia. Não é uma grande cidade, mas é trânsito de meio-dia. Daqui a uns trezentos metros tem uma escola. As crianças vão para casa pela calçada. Atravessam a rua. Correm. Oitenta quilômetros por hora não parecem mais tão seguros assim. Deve ser por isso que as placas limitam em sessenta. Imagino uma criança surgindo de trás de uma árvore, distraída, fugindo de brincadeira. Eu não tenho tempo de frear. Algo bate no meu capô. Tudo rápido. Imagino. Visualizo. A criança. Fico em choque. A criança. Desespero. Lembro da minha filha. Poderia ser ela. Mas não é ninguém. Só minha cabeça. Seria horrível. Acabaria com a vida dela, da sua família, com minha vida. Viveria com isso pra sempre. Um pesadelo eterno. A culpa, o remorso. Vergonha. Desculpas inúteis. Engulo seco. Fico ofegante. Poderia acontecer. Poderia ter acontecido. Costuma acontecer. Todo dia. Em todo lugar. Poderia estar acontecendo. É só uma questão de azar, de acaso, de circunstância. Num segundo, tudo bem. No outro, o inferno. Num instante a alegria da criança. No outro, a dor. Sofro com a possibilidade. Parece que aconteceu. Que horror! Reduzo. Passo no quebra-molas. Foi tão forte. Tão real. Nunca senti isso. Seria uma visão? Será que as visões são assim?

Quero uma pedra no rim

Quero uma pedra no rim. Quero sair do trabalho, no final do dia, sentindo um desconforto abdominal. Quero sentir a sensação aumentar enquanto dirijo pra casa. Quero chegar com uma dor muito forte. Quero pedir para minha mulher “coloca a chaleira no fogo e me traz uma bolsa de água quente. Tô com pedra no rim!”.

Quero vestir o pijama com esforço e velocidade desajeitada, para me deitar o quanto antes possível. Quero sentir o calor reconfortante da minha cama, mesmo que não consiga permanecer quieto sob o edredom. Quero sentir o alívio de uma dor superinsuportável passar para somente uma insuportável — “ai, que bom…”. Quero um beijo carinhoso.

Quero sentir o queimar se movimentar lentamente do rim à bexiga. Quero andar pela casa vigorosamente, para fazer a pedra descer, acompanhado de minha filha de três anos que imita soldado atrás de mim, dá risada e, agora, menos preocupada, me faz tirar um sorriso não sei de onde.

Quero tomar muita água, encher o copo muitas vezes, ir ao banheiro outras tantas — “sai, desgraçada!”. Quero urinar sangue. Quero um reike amoroso e um cafuné inocente. Quero ficar bom, mas só duas horas de dor até que não é tanto. Ao lado de minha filha que dorme, quero conversar com minha mulher sobre a vida, fazer planos para o futuro me sentindo renascido. Quero acordar no dia seguinte com uma voz de criança perguntando “melhorou, papai?”. Quero uma pedra no rim todo dia 27, pelo menos.

Tive, ontem, minha quarta cólica renal. A segunda do lado direito. E foi maravilhoso.

Em 1978…

Caro Picadura,

Confesso que a primeira coisa que estranhei foi seu nome. Sei que a sua mãe não tem culpa disso. Deve ser, provavelmente, um pseudônimo artístico. Por isso, aconselho-o a repensá-lo. “Picadura” não é muito pop. Definitivamente. Quanto à fita-demo de sua banda, preciso ser franco: ela é muito inconstante. Algumas músicas são muito ingênuas e o fato de vocês serem só três, deixa o som um pouco vazio na maioria do tempo. O mercado não quer isso. Olhe as bandas de sucesso. Essa história de punk (estilo no qual vocês embasam sua “pegada”) não vai durar muito tempo. O lance agora vai ser muito teclado, backing vocals. A música vai crescer. Pode acreditar.

Mas entre todas as faixas de sua fita, percebi que algumas até têm potencial, mas precisam ser melhor trabalhadas. Entre elas, a faixa 2. Em primeiro lugar, vocês deveriam trocar ela de posição. Ela tem que ser a primeira, pois é uma canção de impacto e se não mudar, assim como eu, as pessoas podem ter vontade de parar de ouvir o disco antes dela chegar. Aí, dançou. Ê, musiquinha chata aquela 1. Seguindo na 2, ela inicia muito de soco. O vocal não pode começar assim tão direto. Tem que ter introdução para o pessoal ir se preparando. Ir dançando, entende? Tem que ter um riff forte na introdução também. Quem inventou esse padrão na música pop sabia o que estava fazendo. Acredite em mim. Repensem.

E você (você é o vocalista, certo?) canta bem até, mas o tom tá muito alto. Você tá gritando muito, pô. Tá se esgoelando! Baixa uns 2 dois tons que fica bem melhor. E esse guitarrista de vocês? Cá entre nós, ele não toca nada. Fica só enrolando e não sai do lugar. Muito barulho e pouca nota. Pouquíssima nota. Ele por acaso é pago por nota e vocês tão em contensão de despesas? Isso que essa faixa ainda tem solo, porque as outras nem solo têm. Onde se viu música sem solo de guitarra? Isso é rock, meu amigo! Rock! Tem que trocar esse cara. Urgente! Esse pessoal do metal é que entende de guitarra. Quem sabe você não coloca um desses cabeludos? De repente, ao invés de substituir, se não querem perder o amigo, coloca uma segunda guitarra. O metaleiro fica de solo e o outro fica nos chaca-chacas dele. E quanto ao batera? De onde ele saiu? Ele até é criativo, mas é muito exibido — demais — e dá umas baquetadas meio fora do tempo, né? Eheheh. Bem fora. Não percebeu? Não vai me dizer que é música de vanguarda. Música de vanguarda ninguém compra. Tem que ser tudo quadradinho. Pop, meu amigo. Tem que ser pop!

Outra coisa, reavalie a letra dessa 2. O pessoal não vai cantar junto algo tão melancólico “Me sinto tão sozinho, tão sozinho, tão sozinho…”. Aproveita também e revê o nome da banda. “A Polícia”? Os jovens não gostam de polícia. E se fosse “Os Bandidos”? Isso sim tem cara de rock! Rebeldia. Atitude. Te lembra dessa palavra: “atitude”.
Picadura, troque de nome, siga também meus outros conselhos e, depois, me mande uma nova versão de sua demo. Aí, sim, vai vender milhões. Pode acreditar. Pode acreditar.

Marketing Gravadora

================================

Para ler escutando “So Lonely” do primeiro disco do “The Police”.