Chi comanda qua?

Apesar de ter sido criado com comida caseira e típica da colônia italiana da Serra Gaúcha, Seu Henrique, meu sogro, gostava de algumas “novidades” no cardápio. Comida chinesa (brasileira) e pizza (brasileira) eram suas transgressões favoritas. Esporadicamente, o descendente de italianos, de unha grossa, dedo torto e calcanhar cascudo, gentilmente ordenava: “Hoje quero comer uma pizza!” e, assim, a comitiva saía para jantar.

Foi o que aconteceu, quando diversos membros da família que moravam distantes foram visitar o nono. Na pizzaria, juntaram umas quatro ou cinco mesas para acomodar os cerca de 20 filhos, netos e agregados.

Todos com um cardápio em mãos, já havia se passado uns quinze minutos e a quantidade de sabores em fase de negociação e votação já era maior que o número de pessoas. Seu Henrique, sentado na cabeceira, com o botão da camisa aberto no umbigo, era o único que não se manifestava, impaciente com a confusão.

Quando chegou à mesa para tomar nota do pedido, o garçom anotou a decisão de Seu Henrique que seriam quatro pizzas grandes, mas foi indagado pelo neto mais comilão: “De quantos sabores pode ser cada pizza?” Pronto! A pergunta do inferno! Capaz de acabar com qualquer harmonia de uma mesa de restaurante. “Quatro”, respondeu o moço. Só que como haviam escolhido mais sabores do que os 16 possíveis para as quatro pizzas, instaurou-se nova gritaria para acomodar as vontades de cada um.

Atordoado pela balbúrdia e indecisão coletiva, Seu Henrique bateu na mesa com a mão aberta, maior do que o cardápio, e sentenciou: “Má qué? Porco Dio! Tá decidido! Vai ser tudo de milho!

E assim veio. Todos comeram sem dar um piu.

Invenções para conversas informais (ou não) em grupo

1. Um sistema que identifique as vozes de cada pessoa em uma conversa e mostre em um placar, em tempo real, o tempo que cada uma falou.

2. Cada pessoa teria um controle remoto, que pressionaria o botão para se inscrever para falar. O sistema, inteligente, ordena a vez de cada um é mostra em um placar (poderia ser o mesmo da ideia anterior). A “inteligência artificial” (só porque está na moda) não levaria em consideração apenas a ordem em que as pessoas pressionaram o botão pedindo a vez: se alguém que pouco falou pedir voz, passaria na frente de quem monopolizou a conversa demais.

Obviamente, isso tudo poderia ser um aplicativo de celular com todos conectados em rede.

Sim, na minha família falam todos ao mesmo tempo, em assuntos misturados.

Queimadura

Eles têm um calefator de dupla combustão. Uma gentileza, sem dúvida, para os clientes que vêm jantar com esse frio todo. Penso em sentarmos à mesa mais próxima para aquecer meus pés congelados, mas lembro das experiências com o que temos em casa. Já queimei as pernas algumas vezes me acomodando perto demais. Na hora não se percebe, mas dois dias depois a pele aparece vermelha, começa a escamar e faz casquinha. Uma violência que a gente não se dá conta. No mínimo, um metro de distância é o indicado. Vamos para a mesa ao lado.

Já estamos jantando quando uma família entra no restaurante e se encanta com o aquecedor à lenha. Sem dúvida não são daqui. “Vamos sentar nesta, que tá uma delícia! Aqui eles precisam disso, viu?” O garçom tenta orientar para que escolham outro lugar, mas, como se diz, “o cliente sempre tem razão”.

As duas mulheres do grupo ficam com as costas a um palmo do ferro quente. Está na cara que não vai dar certo. O funcionário, sem jeito, volta da copa e insiste outra vez. Relutantes, afastam-se uns 10 centímetros e seguem se aquecendo. A distância ainda é curta. Amanhã vão começar a sentir as consequências.

Estou naquele dilema: sei que devo tomar uma atitude mas fico com receio de como receberão minha abordagem. Como falar?

— Senhoras, estão muito perto do calefator. Vai causar uma queimadura que só perceberão depois.

Azar. Não é da minha conta. O garçom já orientou. Quem sou eu pra me meter? Ao mesmo tempo, sinto-me no dever.

— Boa noite. Eu tenho um desses em casa. Algumas vezes já me queimei sentando tão perto.

O prato deles chega. Não vou atrapalhar agora. Imagina fazê-los trocarem de lugar com o pedido já servido. Demorei demais.

Pago a conta e passo por eles.

— Mas essas picanhas vão ficar passadas, hein?!

Mentira. Não falei.

Cucaverso

Banheiro.

Desodorante em uma mão, tampa na outra, enquanto usava. Um gesto brusco, descuidado, e a tampa escapuliu por entre meus dedos rumo ao chão. Cerca de um metro e vinte rodopiando. Meu primeiro instinto foi o de pegar no ar. Refleti que movimentos bruscos e repentinos costumam trazer consequências à minha lombar.

Deixei pra lá.

Continuava caindo.

Ponderei que, talvez, se me movimentasse com cautela, não haveria problema. Mas já tinha se passado algum tempo e, mesmo com toda habilidade, seria em vão.

Definitivamente, não arriscaria. Quem sabe se deixasse quicar na lajota e agarrasse na volta? Aí, sim, daria! Em trajetória ascendente, certamente era mais fácil e seguro pra coluna.

O chão se aproximava.

Por outro lado, a tampa de formato irregular dificilmente retornaria na mesma trajetória. Se fosse esférica… Mas era conoidal.

Atingiu o piso do banheiro e voltava.

Arquei o braço ao chão. Catei o objeto quicante e espirulitado.

Me senti o Homem-aranha.

As regras centenárias do futebol

A Fórmula 1 altera regulamento todo ano. Assim, oferece mais desafios às equipes e pilotos, além de aumentar a competitividade e renovar o interesse dos apreciadores.

Por que o futebol não se inspira nesse pensamento?

A adoção do VAR foi a única grande mudança que vi. E não se tratou de regra mas de arbitragem — para verificar com maior eficiência AS MESMAS REGRAS.

Proponho, então, O FIM DO IMPEDIMENTO PARA 2021!

O que aconteceria? Mais gols. Uma necessidade enorme de alterar pensamentos táticos — o que seria bom até para o combate ao Alzheimer de técnicos, jogadores e torcida!

Mas sério, é uma das poucas regras que não têm uma justificativa para existir. Por exemplo: lateral, escanteio e tiro de meta, servem para que a bola não saia dos limites do jogo. É importante ou o jogo entraria nas arquibancadas, chegaria às ruas… Falta e pênalti servem para conter a violência e tentar que o jogo fique dentro da civilidade e do espírito esportivo. Idem os cartões amarelo e vermelho. Toque de mão serve para que o jogo continue se chamando “football”.

Agora, o impedimento serve pra quê?! Se ambos os times pudessem receber a bola à frente de seus adversários, não significaria vantagem para algum deles.

Imagino que a regra exista pra que o jogo seja mais aberto e não tão concentrado perto do gol. Mas acho que seria legal um ano de teste sem impedimento.

Vocês devem estar percebendo que não entendo nada de futebol. Entendo de criar elementos que atraiam a atenção das pessoas, vendendo mais ingressos e patrocínios às transmissões. :)

Diálogo Esquizofrênico

— Oi. Tá boa?
— Tudo bem, querida?
— Viu aquele treco do Vilmar?
— Guria… Sabe que eu não…
— Nunca imaginei uma…
— … acreditei naquilo. Porque ele…
— … coisa dessas. Ele era mais…
— … parecia tão, tão…
— … novo que o Oscar. Mas estudaram…
— … feliz. E depois, aquela coisa toda da mulher dele que…
— … juntos quando ele rodou de ano, lá no Colégio São…
— … passou por tudo aquilo. Isso tudo me dá…
— … Francisco de Assis.
— … muita pena. Muita pena dos filhos…
— É. Muita pena mesmo.
— Então tá, tchau.
— Bom falar contigo. Beijo.
— Beijo.

Tem gente que conversa assim. Vai entender…

O Discurso

SONY DSC— Ela pediu que você falasse amanhã? O Pato te adorava.
— Ã… Tá… Diz pra Dona Neusa que ela pode contar comigo.

Não sei o que estava sendo pior. A notícia fulminante, mas nem tão surpreendente, da morte do meu amigo Graciel — o Pato — ou o pedido de sua mãe para que eu falasse no funeral. Eu escrevia bem. Talvez ela tenha lembrado de mim porque eu e o Pato fazíamos um fanzine de motocross na adolescência. Eu redigia as matérias e o Pato diagramava. Será que leu o texto sobre o Rally da Colônia? Aquele ficou bom! O problema é que sempre tive certa fobia de me manifestar em público e agora deram-me a incumbência de ser arauto de algum tipo de consolo aos familiares e conhecidos de meu amigo de infância. Só tinha visto discursos fúnebres em filmes. Nunca presenciei.

Todo mundo sabia que o Pato não chegaria aos 40. Mas 24 certamente era cedo demais. Bebida, direção, drogas. Todo fim de semana era assim. Quinta, sexta, sábado. Às vezes até quarta. Eu havia parado de sair com ele justamente por causa disso. Conversas e conselhos não faltaram. Cansei de ser o chato. Todo mundo cansou. Pato era de bom coração, mas não aparentava. Só por isso eu ainda mantinha contato. Só que ele sempre teve essa ânsia autodestrutiva, essa coisa da diversão acima de tudo, sem importar o que custasse. Pato já caíra de moto três vezes, sendo que em uma ficou na cama, todo quebrado, por dois meses. Já fora levado algemado para a delegacia por porte de ecstasy e expulso do colégio por atear fogo nas cortinas da sala de aula. É claro que ele sempre tinha um isqueiro. No final, a gente não nem mais se via muito pessoalmente, nem nos aniversários dos amigos em comum. Ele nunca ia. Nosso último papo foi no Facebook. Me convidou para atravessar os Andes de moto. Nem morto!

Peguei meu caderno especial, para ocasiões especiais, para textos especiais. Pensei no que escrever. Não havia muito para falar sobre sua vontade de viver; não era exemplo para ninguém. Não dava para discorrer sobre como enxergava a vida; não seria inspiracional. Não podia falar da falta que faria; mesmo os mais próximos haviam se afastado. Pato não tinha nenhum talento a ser cultuado. Mal desenhava uma casinha com chaminé. Não sabia assobiar. Até no poker era um desastre. Eu não tinha o que dizer de Graciel Alves de Lima. Nadinha. Amizade que não se explica. O texto mais importante da minha vida, o tempo passando rápido e eu com writer’s block. Que chique!

O dia amanheceu nublado. Parece que em velório é sempre assim. Pelo menos nos que fui. Pouca gente apareceu. Dona Neusa consternada, a irmã blasé, o tio que só deve ter ido porque precisavam de um homem forte para ajudar a segurar o caixão. Não mais que 10 pessoas, incluindo o pessoal do cemitério. Meia hora depois que cheguei decidiram finalizar o velório e proceder ao enterro. Melhor assim. Claro que segurei o caixão, junto com o Xandão, o tio Murci e alguém de uniforme azul por perto. Pato estava bem magro, quatro deram conta tranquilamente. Antes de o colocarmos no cubículo em que passaria a eternidade, Dona Neusa fez questão de lembrar da incumbência que me dera.

— Creio que o Tom, amigo de Graciel desde os três anos de idade, tenha preparado algumas palavras para este momento.

Assenti. Fitei todos rapidamente. Seus semblantes eram uma mistura de vamos-logo-com-isso e incredulidade. “O que alguém teria a dizer sobre aquele jovem?” Coloquei a mão no bolso da calça, tirei a caderneta, cocei a nuca. Abri na página marcada. Com os olhos ainda baixos, fiz o que tinha que ser feito. Em voz baixa, mas audível, proferi tudo que era necessário:

— Eu te disse, Graciel.

Inserimos o caixão. O cara de azul lacrou com cimento e fomos almoçar. Já eram quase 12h.

Passagens

canstockphoto0232824Sábado. Vento norte. Porto Alegre, Aeroporto Salgado Filho, Terminal 2, terraço. Michel, 35 anos, observando a pista é abordado por um conhecido.

— E aí, Michel?
— Beleza, cara?
— Beleza.
— Tá vindo direto aqui?
— Não… Só aos sábados. Tô trampando.
— É… Eu também.
— Visse que o horário do Felipe passou para às 10h?
— Vi. Os pilotos estão todos refazendo a agenda. Deve ser por causa das mudanças dos voos, pra Copa. Mudou tudo.
— Deve.

— E o avião novo aquele?
— Legal, meu. Bem joia!
— Tem um ronco mais constante, puxado pro grave, mas com uns ra-ta-tás específicos… Sei lá. Trilouco.
— É. Um som lindo, diferente. Nem parece Boeing.
— Fotografei e mandei lá pro grupo. Colocaram na capa!
— Poxa, que tri!
— Ficou show mesmo. E os caras de São Paulo se puxam nas fotos, então, fiquei felizão!
— Vou ver depois. Ainda não entrei hoje.

— Tá boa a luz hoje, né?
— Céu de brigadeiro.
— É isso aí. Pode crer.

Meia hora depois, Michel senta em um banco, olhando para a pista. Uma senhora já de idade senta junto, na outra ponta, e não contém o entusiasmo.

— Olha, olha, olha…
— Subiu bonito, né?
— Uma pluma… Para um A330…
— É mesmo… A senhora está esperando alguém?
— Não, tô só a passeio. E tu?
— Também.


— Este voo é novo?
— É.
—Sabe que eu gostava mais na época da Varig, da Transbrasil, da Vasp…
— A Vasp era massa, né?
— Todas eram. Época boa que não volta mais.
— Era outro clima… Mas depois de toda a politicagem que fizeram…
— É?
— Pô, cheio de gente graúda envolvida e os caras tentando abafar os escândalos.
— Que coisa séria…
— E os funcionários chupando dedo… Sacanagem…
—Sempre estoura do lado mais fraco.

Ele levanta e, por uns 15 segundos, analisa o monitor de chegadas e partidas. Volta pro lugar.

— Eu agora tô juntando dinheiro…
— É?
— É. Quero ver se eu viajo também.
— Isso é uma coisa boa!
— É, né? Deve ser.
— É bom. É bom, sim.
— Pois é…

Por mais 15 minutos os dois ficaram olhando a pista, até decolar o próximo. O tempo começou a fechar. Michel novamente foi ver o painel de voos e a senhora foi embora. Não se despediram. O vento mudou para noroeste.

A Loja de Uma Coisa Só

Frederico Uribe

Quem nunca teve vontade de mudar radicalmente aquilo que faz como profissão; escolher algo totalmente inverso, que não tenha as complicações e implicações de nossos trabalhos diários? Eu já.

Em um desses meus devaneios, penso em abrir algum comércio especializado em um único tipo de produto. Por exemplo, uma loja focada em fósforos, ou em pregos, ou em pentes. Algo assim, à primeira vista, bem ridículo, mas que quando alguém precisasse lembraria direto como o melhor local para comprar. O nome seria bem objetivo, como “Casa dos Pregos”, “Só Fósforos”, “Cuca Pentes”. A Casa dos Pregos não teria parafusos, no máximo martelos. A Só Fósforos jamais venderia isqueiros. Seria contra nossos princípios. E a Cuca Pentes até poderia ter escovas, mas nunca tesouras, muito menos xampus ou secadores de cabelo.

E não é que passando de carro pela Andrade Neves, próximo ao Mercado Central, avistei uma “Só Cadarços”? Meus olhos brilharam. De imediato, o primeiro impulso foi pedir emprego. Já imaginei cadarços de todas cores imagináveis, em colunas cromáticas como uma imensa tabela Pantone. A realização do meu sonho de ser bibliotecário. Modelos fosforescentes, dourados, prateados, furta-cor, zebrados, onçados, tigrados, listrados, peludos, com LED e pilhas, que amarram sozinhos, elásticos, de nylon, curtos, longos, médios, médio-longos, médio-curtos, para cano alto, cano baixo, sem cano, folhetos explicativos com diversos tipos de nós, uma para cada ocasião. Não parei para conhecer, mas minha cabeça foi longe.

Visualizei meu primeiro dia de trabalho na Só Cadarços, 8h30, todo empilhado, pronto para atender o primeiro cliente:

— Tem cadarço?

É… Talvez eu não esteja ainda preparado para tamanha evolução espiritual.

Deu para perceber?

az60b[1]— Sala 3, 20h, “O Segredo de Sarah”, por favor.
— Uma entrada só, senhor?
— Sim. Uma só.
— O senhor não vai… ? É… Não vai… ?
— “Não vai” o quê, moça?
— Não vai querer?
— “Querer” o quê, menina?
— Aquilo?
— “Aquilo”?
— É… “Aquilo”!
— Desculpa. Não estou entendendo.
— Aquilo que muitas pessoas que vêm ao cinema pedem.
— Pipoca?
— Não, senhor…
— Coca-cola?
— Não.
— Você está me oferendo drogas, senhorita?
— Não! Claro que não, senhor… Deusolivre. Sou de igreja…
— Ah, entendi… Por isso esse mistério todo. Não está acostumada com papos objetivos, né?
— Senhor…
— Vamos logo, minha filha. Me dá o ingresso logo que a sessão vai começar.
— Sim, mas eu preciso saber…
— Ah, não… Tudo de novo?
— Senhor, quantos anos o senhor tem?
— 59.
— É?
— Tá duvidando?
— Claro que não, senhor. É que parece que o senhor tem mais.
— Parece mesmo?
— Um pouco mais, só. Bem pouquinho.
— Tipo, quanto?
— Ah, tipo, assim… Ã… Tipo, assim… 60.
— Deu mesmo para perceber, é?
— Ué? Mas o senhor não disse que tem 59?
— Na verdade, fiz 60 semana passada…
— Então, senhor… Não vai querer?
— Não! Eu não vou querer pagar meia entrada! Não vou querer! Merda!